Todo criador sério passa ao longo da vida por momentos em que o anseio pela forma, a maturidade da experiência e o tema confluem, e uma solução por ora imperiosa para questões árduas vem restaurar a serenidade. Entre um e outro desses momentos de clímax, tudo é vida e trabalho. Lasar Segall conhece, no ano de 1918, Uma doce criatura, de Dostoiévski, e o que até então era luta e inquietação torna-se clareza e simplicidade. Os elementos da expressão gráfica, que também em Segall tendem sempre a levar vida própria, capitulam e se fundem à melodia dolorosa de uma tragédia humana compartilhada. Uma mesma condensação de sentimentos que convergem para a forma faz do encontro dos dois russos um todo inesperado. A concisão final de Dostoiévski mostra-se mais decidida, mais transparente nas folhas de Segall. O enigma reside em como os poucos, parcos traços e planos sejam capazes de uma linguagem tão intensa. A formulação é tão coerente, tão auto-suficiente quanto os temas de uma peça musical rigorosa. Sempre a mesma mão, o mesmo olho, a mesma posição da cabeça, mas com significados diferentes ao sabor de suas relações. Todos os sons dispensáveis ficam de lado; nenhum sinal das circunstâncias que ainda aparecem na ficção. Restaram apenas as personagens, que criam sua própria atmosfera, ao mesmo tempo interior e exterior. Ela provém da questão, eternamente insolúvel, do homem e da mulher; portanto, é tão pouco erótica quanto na novela, igualmente pan-trágica e metafísica.
A caminhante: solidão, incompreensão, renúncia monástica diante da dúvida, do medo e da coerção. Homem e mulher: na dinâmica dos traços, o amargo desencontro, a incompreensão torturante, a luta refreada. Oração: superação das barreiras, anulação do peso, os olhos ensimesmados são mais opressivos que toda a figura ajoelhada. Determinação cautelosa, na gravura como na oração. Duas cabeças: o vulto extinto e sereno da criatura dócil e a carantonha do homem petulante e enganado, à mercê do caos de traços e pensamentos sem direção. No leito de morte: levitação da morta, obstada apenas pelas linhas transversais da cabeça pétrea do homem. Traços mínimos, expressão poderosa. Morte e vida num mesmo espasmo, mas a vida é morte, a morte é vida.
Segall não tem parentesco com nenhum dos russos de hoje, seja com Chagall ou com Kandinsky; é livre tanto de misticismo camponês como de embriaguez estética. Pela intuição, liga-se a seus compatriotas, a coerência e a concisão da forma ligam-no ao Ocidente; mas o fundamento ético de sua existência humana e artística tem a palavra final: o Leste é sempre sua pátria.
Will Grohmann
Uma doce criatura, 1918
álbum com 5 litografias sobre papel e apresentação de Will Grohmann
Acervo Museu Lasar Segall – Ibram/Ministério da Cidadania